domingo, 12 de março de 2017

Outras Cozinhas - Nicolás Guillén

Três poemas retirado do livro Sôngoro Cosongo e Outro Poemas, do poeta cubano Nicolás Guillén:


A Muralha

Para erguer esta muralha
me tragam todas as mãos:
os negros, suas mãos negras,
os brancos, as brancas mãos.

Ai,
uma muralha que vá
desde a praia até a montanha,
da montanha à praia, bem,
lá sobre o horizonte.

- Tun, tun!
- Quem és?
- Uma rosa e um cravo...
- Abre a muralha!
- Tun, tun!
- Quem és?
- O sabre do coronel...
- Fecha a muralha!
- Tun, tun!
- Quem és?
- A pomba e o cravo...
- Abre a muralha!
- Tun, tun!
- Quem és?
- O escorpião e a centopéia...
- Fecha a muralha!

Ao coração do amigo,
abre a muralha;
ao veneno e ao punhal,
fecha a muralha;
à mirta e à hortelã,
abre a muralha;
ao dente da serpente,
fecha a muralha;
ao rouxinol na flor,
abre a muralha...

Ergamos uma muralha
juntando todas as mãos:
os negros, suas mãos negras,
os brancos, as brancas mãos.
Uma muralha que vá
desde a praia até a montanha,
desde a montanha até a praia, bem,
lá sobre o horizonte...



A Canção do Bongô



Esta é a canção do bongô.
 - Aqui, o que mais fino seja
responde sempre que eu chamo.
Uns dizem:  Agora mesmo,
outros respondem: Já vou.
Porém, meu repique rude,
porém,  minha profunda voz
chama o negro e chama o branco
que bailam o mesmo son,
pelipardos e almipretos,
mais de sangue que de sol,
quem por fora não for noite,
por dentro já escureceu.
Aqui, o que mais fino seja,
Responde sempre que eu chamo.

Pois nesta terra mulata
de africano e de espanhol
(Santa Bárbara de um lado
e do outro lado Xangô),
sempre falta algum avô,
quando não sobra algum Don
e há títulos de Castilla
com parentes em Bondô:
vale mais calar-se, amigos,
não levantar a questão,
porque chegamos de longe
e andamos de dois em dois.
Aqui, o que mais fino seja,
Responde sempre que eu chamo.

Haver pode quem me insulte,
mas nunca de coração;   
quem de público me cuspa
mas sozinho me beijou...
A esse lhe digo: - Compadre,
já me pedirás perdão,
já comerás do meu caldo,
já me darás a razão,
já me golpearás o couro,
já à minha voz bailarás,
já iremos de braços dados,
já chegarás onde estou:
virás de baixo pra acima,
que o mais alto aqui sou eu!


Problemas do Subdesenvolvimento

Monsieur Dupont te chama inculto,
porque ignoras qual era o neto
preferido de Victor Hugo.

Herr Müller se pôs a gritar
porque não sabes o dia
(exato) em que morreu Bismark.

Teu amigo Mr. Smith,
inglês ou ianqui, não sei bem,
se subleva quando escreves shell.
(Parece que economizas  um ele,
e que admais pronuncias chel.)

Bom, e daí?
quando chegue a tua vez,
manda-lhes dizer cacarajícara
e onde está o Aconcágua,
e quem era Sucre
e em que lugar deste planeta
morreu Martí.

Um favor:
que te falem sempre em espanhol.


A tradução do poemas é do poeta Thiago de Mello.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Caderno da vó Elce - VI


Mais um belo poema retirado do caderno da vó Elce:

Estranhas Lágrimas

(Félix Pacheco)

Lágrimas! Noutras épocas verti-as...
Não tinha o olhar enxuto como agora
Alma! Dizia então comigo, chora
Que o pranto diminui as agonias.

Ah! Quantas vezes pelas faces frias,
Por mal do meu amor, que se ia embora,
Gota a gota, rolando, elas outrora
Marcaram noites e marcaram dias!

Vinham do oceano d'alma, imenso e fundo,
Ondas de angústia, em suspiroso arranco,
Numa desesperança acerba e louca.

Nos olhos, hoje, as lágrimas estanco...
Mas rolam todas, sem que as veja o mundo,
Sob a forma de risos, pela boca...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Stig Dagerman


Várias de minhas leituras, de minhas jornadas literárias, começam ao acaso em algum sebo. Esta, porém, começou um pouco antes, em uma visita ao blog do poeta e tradutor Ivo Barroso (gavetadoivo.wordpress.com). Em uma de suas postagens, o poeta apresenta um pouco da vida e das obras do escritor sueco Stig Dagerman (1923-1954) e ressalta que, embora famoso em seu país, o autor é praticamente desconhecido no Brasil. Como aperitivo, Ivo apresenta ainda um conto de Dagerman (MATAR UMA CRIANÇA - Att Döda ett Barn)  traduzido em 2008.

Após me impressionar com o conto apresentado, não tardei em sair à procura de algum exemplar da obra de Dagerman. E, embora não estivesse muito confiante que iria encontrar alguma das raras traduções para o português, em poucos dias localizei em um sebo próximo a minha casa um exemplar ainda bem conservado do romance “Vestido vermelho”.  Ainda estou bem no início do livro, mas arrisco-me a dizer que sem dúvida corresponderá às minhas expectativas em relação à obra. Portanto deixo de sugestão  o livro (e a saga em busca do livro). E, como aperitivo, compartilho aqui o conto servido anteriormente na Gaveta do Ivo:


MATAR UMA CRIANÇA – Stig Dagerman
É um dia leve e o sol cai a pino sobre a planície. Logo os sinos irão tocar, pois é domingo. Entre campos de centeio, dois jovens encontram um caminho nunca dantes percorrido e contemplam no fundo do vale as vidraças brilhantes de três vilarejos. O homem faz a barba diante do espelho sobre a mesa da cozinha e a mulher cantarola enquanto corta o pão; sentada no chão, a criança tenta abotoar o corpete. É a manhã idílica de um dia nefasto, pois neste mesmo dia uma criança será morta no terceiro vilarejo por um homem feliz. Enquanto isto, a criança sentada no chão ajusta os botões de seu corpete e o homem que se barbeia diz que hoje irão sair e farão um passeio de barco e a mulher cantarolando coloca as frescas fatias de pão num prato azul.
Não há sombras na cozinha, e enquanto isto homem que irá matar a criança está em frente a uma bomba de gasolina vermelha em um posto de abastecimento no primeiro vilarejo. Ainda é um homem feliz que olha o visor da câmera e vê na lente um carrinho azul e ao lado do carro uma garota que sorri. Enquanto a moça sorri e o homem faz a foto belíssima, o atendente do posto fecha a tampa do tanque e lhes deseja bom dia. A garota entra no carro e o homem que irá matar uma criança retira a carteira do bolso e diz que eles irão até o mar e quando lá chegarem vão alugar um bote e remarão para bem longe.
Baixando o vidro da janela do carro, a moça no assento dianteiro escuta o que ele diz, fecha os olhos e ao fechá-los vê o mar e o homem ao seu lado no bote. Ele não é um homem mau, está alegre e satisfeito e, antes de entrar no carro, para um instante diante do radiador cintilante, desfrutando do reflexo, do cheiro de gasolina e das cerejas. Não há nenhuma sombra sobre o carro e o para-choque não está amassado nem manchado de sangue.
Mas, ao mesmo tempo em que o homem naquele primeiro vilarejo, outra vez bate a porta do carro à sua esquerda e dá partida, a mulher na terceira vila abre a porta do armário da cozinha e não encontra nenhum açúcar.  A criança que acabara de abotoar seu corpete e sozinha deu laços nos sapatos está de joelhos no sofá e vê o córrego que serpenteia entre amieiros e um barco velho com os remos jogados sobre a grama. O homem que irá perder sua criança está barbeado e acaba de guardar o espelho. Sobre a mesa os copos de café, pão, creme de leite e algumas moscas. Falta apenas o açúcar e a mãe diz para a criança correr até os Larssons e pedir alguns cubinhos emprestados.  E enquanto a criança abre a porta o homem grita da cozinha que é para ela se apressar, porque o bote está à espera na margem e eles irão remar para bem longe como não haviam remado antes.  E enquanto corre atravessando os quintais a criança pensa o tempo todo no riacho, no bote e nos peixes se batendo e ninguém conta para ela que tem apenas oito minutos de vida e que o bote continuará lá o dia inteiro e por muitos outros dias irá continuar.
Não é tão longe até os Larssons, é só atravessar a rua e enquanto a criança corre para atravessá-la, um pequeno carro azul percorre o outro vilarejo. É uma pequena vila com casinhas vermelhas e pessoas que acabaram de acordar diante da mesa da cozinha segurando copos de café, vendo o carro passar acelerado no outro lado da cerca levantando, enquanto passa, uma imensa nuvem de poeira. Vai muito rápido e o homem que dirige vê as macieiras e os postes com seus cabos telegráficos de relance como se fossem sombras muito escuras. A brisa do verão entra pela janela, eles saem da vila, e estão seguros no meio da estrada e estão sozinhos – ainda. É gostoso este viajar solitário por uma estrada tão ampla e com o campanário ao longe fica ainda mais bonita. O homem é feliz e forte e com o cotovelo direito sente o corpo de sua namorada. Não é um homem mau. Tem apenas pressa para chegar ao mar. Não mataria uma mosca, mas ainda assim irá matar uma criança. Enquanto aceleram de encontro à terceira vila a garota fecha os olhos e brinca que não irá abri-los enquanto não cheguem ao mar e imagina no ritmo do balanço oscilante do carro quão tranquilo o mar vai estar.
E porque a vida é construída sem nenhuma compaixão um minuto antes de um homem feliz matar uma criança ele será ainda feliz e antes de a garota gritar apavorada ela conseguirá fechar os olhos e sonhar com o mar, e o último minuto na vida de uma criança pode ser aquele em que os seus pais sentados na cozinha esperam pelo açúcar e conversam sobre os dentinhos brancos de seus filhos e sobre um passeio de domingo. Esta mesma criança fecha um portão e começa a atravessar a rua segurando na mão direita alguns cubinhos de açúcar enrolados num papel branco e este último minuto nada mais é do que um longo e tranquilo riacho com peixes grandes e um barco com remos silenciosos.
O depois é sempre tarde demais. O depois é um carro azul derrapando pela estrada e uma mulher que aos gritos tira a mão da boca e a mão está sangrando.  Depois um homem que abre a porta do carro tentando ficar de pé embora tendo um abismo de terror dentro de si.  O depois são alguns cubinhos de açúcar esparramados entre o sangue e o cascalho e uma criança deitada imóvel de bruços com o rosto pressionado contra a estrada. Depois aparecem duas pessoas pálidas, que ainda não beberam seu café correndo e passando a cerca e vêem naquela estrada o que nunca irão esquecer. Porque não é verdade que o tempo é o melhor remédio. O tempo não cura a dor de perder um filho e cicatriza muito mal a mesma dor de uma mãe que se esqueceu de comprar açúcar e mandou a criança atravessar a rua para pedir um pouco emprestado. E o tempo também não cura a angústia do homem feliz que a matou.
Porque aquele que matou uma criança não vai até o mar. Aquele que matou uma criança volta em silêncio para casa e ao seu lado uma mulher que não consegue falar e com as mãos enfaixadas. E por todas as vilas que passam eles não conseguem ver uma única pessoa feliz. Todas as sombras são ainda mais escuras e enquanto eles se distanciam o silêncio continua e o homem que matou a criança sabe que este silêncio é o seu inimigo e que ele irá precisar de todos os anos de sua vida para vencê-lo gritando que não foi sua culpa. Mas ele sabe que é uma mentira e que ao invés disso, em cada noite ao se deitar, ele irá desejar apenas um minuto de sua vida de volta para fazer deste único minuto algo diferente.
Mas a vida não tem piedade para aqueles que matam uma criança e, por isso, tudo que vier depois será sempre tarde demais.


Nota retirada também do blog de Ivo Barroso:
A tradução deste conto foi publicada no Brasil inicialmente na revista Dicta & Contradicta, de dezembro de 2008, nr.  02, pgs. 149-51, com autorização da Norsteds Agentur, de Estocolmo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Luiz Carlos López (Cartagena - Colômbia)


Aproveitando o assunto da última postagem, o Outras Cozinhas desta vez faz uma visita à Cartagena - Colômbia, terra onde nasceram e/ou residiram muitos poetas e escritores, dentre eles Gabriel García Marquez (residiu na cidade). Nessa visita, tive a oportunidade de conversar com alguns colombianos, moradores da cidade, e pedir sugestões de alguns poetas do país, alguns que representassem devidamente a poesia colombiana. Com muita atenção a meu pedido, fui presenteado com uma lista de nomes de poetas locais, já consagrados e admirados na literatura nacional.

Entretanto, qual foi minha surpresa, após exaustiva pesquisa na internet, perceber o quanto era difícil (para não dizer impossível) encontrar qualquer livro ou único poema traduzido para o português da lista que tinha em mãos. Percebi o quão separados ainda nos encontramos da literatura da America Latina, dos Poetas de Canto Castelhano, tão bem traduzidos por Thiago de Mello em sua obra magnífica citada anteriormente.

Mas, numa pequena tentativa de satisfazer minha vontade e me aproximar um pouco daquela poesia até então absurdamente distante, visitei alguns sebos locais e tive a felicidade de encontrar uma belo exemplar de "Poesía Completa, de Luis Carlos López", um brilhante poeta que estava na minha preciosa lista. Compartilho aqui três poemas que selecionei. Infelizmente, como citei anteriormente, não encontrei qualquer tradução desses poemas.

...

Dice por las noches:"Mira, Dorotea,
no tengo un centavo". Melenudo y tal,
se acoge a su cuarto de casa de aldea
y escribe unos versos, un editoral...

No llora. Y si acaso la cosa es muy fea,
se limpia uno que otro saco lacrimal.
Y, después, ? qué importa? Vamos,se pasea
feliz con su terno canario y turpial.

Por el pueblo - y debe mil pesos al mes -
su vida no es vida de oscuro armadillo,
tan hecha de trampas, tan entretenida...

Y si le preguntan: "Pero hombre, ?eso qué es?",
exclama entre el humo de su cigarrillo:
"!La vida, la vida, la vida, la vida!"


Agua e Ron

Agua pura y cristalina,
madre de ranas y sapos
y lavadoras de trapos,
¿quereís que la beba yo?

No, eso no. Ron puro, ron pelmuro
que da salud a los reyes.
El agua para los bueyes
que tienen el cuello duro.


Tarde de Verano

“El rico es un bandido”
San Juan Crisóstomo"

La sombra, que hace un remanso
sobre la plaza rural, convida para el descanso
sedante, dominical…

Canijo, cuello de ganso,
cruza leyendo un misal,
dueño absoluto del manso
pueblo intonso, pueblo asnal.

Ciñendo rica sotana
de paño, le importa un higo
la miseria del redil.

Y yo, desde mi ventana,
limpiando un fusil, me digo:
¿Qué hago con este fusil?


sábado, 21 de janeiro de 2017

Obrigado, Thiago de Mello!


Para abrir oficialmente 2017 no blog, escolhi servir em nossa mesa um prato para lá de saboroso. Trata-se de um trabalho de doze anos do grande poeta da floresta, Thiago de Mello, que selecionou e traduziu poemas e " Poetas da América de Canto Castelhano". Uma antologia, lançada em 2011, de uma importância imensurável para nossa literatura, uma vez que nos apresenta  de um cenário literário tão próximo, em vários sentidos,  mas afastado até então pela língua. Passando pela Argentina, Colômbia, Guatemala, Porto Rico e tantos outros países, a poesia latino-americana é exposta em suas formas mais belas e delicadas. Um livro necessário!

Junto-me a Roberto Fernández Retamar, que faz uma breve introdução do livro, para agradecer de coração a Thiago de Mello por esta obra, por este gesto magnífico. 

Compartilho aqui três poemas que selecionei do livro:

Para falar com os mortos (Jorge Teillier - Chile)

Para falar com os mortos
há que escolher as palavras
que eles reconheçam tão facilmente
como suas mãos
reconheciam o pelo de seus cães na escuridão.
Palavras claras e tranquilas
como a água da torrente domesticada na copa
ou as cadeiras arrumadas pela mãe
depois que os convidados se foram.
Palavras que a noite acolha
como os pântanos e os fogos-fátuos.

Para falar com os mortos
há que saber esperar:
todos são medrosos
como os primeiros passos de uma criança.
Mas se tiveres paciência
um dia nos responderão
com uma folha de álamo presa por um espelho
quebrado,
com uma chama de súbito reanimada na lareira,
com um regresso escuro de pássaros
defronte do olhar de uma moça
que aguarda imóvel no umbral.


Palavra não pode ser algo tão fácil (María Montero - Costa Rica)

A palavra não pode ser algo tão fácil. 
Tem que haver algo menos que sangue para dizer sangue, 
talvez músculo na sombra, ventre liso e maldito. 

Não tão fácil como casa ou serpente. Não tão 
anunciado como mulher. 

Algo menos que filho para dizer filho.Talvez língua, infâmia, peste fraguada
na cegueira. 
A palavra não pode ser algo. 

Não tão fácil a menos que fira. Não tão anunciado como a morte. Talvez 
pedra para dizer talvez. 
  
A palavra não pode ser algo tão fácil. Tem que haver algo menos que ódio 
para dizer ódio. Talvez ruínas, escombros no corpo. 

Não tão fácil como sede ou proveta. Não tão 
anunciado como fera. 

Algo menos que amor para dizer amor. Pelo que mais queiram, talvez fosso, grasnido, ferro distante. 
Não pode ser algo a palavra. 

Não tão fácil diante dos outros. Não tão anunciado,
a menos que morda. Talvez silêncio para dizer nada. 

Uma palavra a menos obriga a mais. 
A palavra não pode ser. Não se desemboca. Não 
contra ela.


O ofício de viver (María Mercedes Carranza - Colômbia)

Eis que chego à velhice 
e ninguém nem nada 
me conseguiu dizer 
para que sirvo. 
Some você
ofícios, vocações, missões é predestinações:
Não é que me aborreça, 
é que para nada sirvo.
Ensaio profissões,
que vão desde cozinheira, mãe e poeta 
até contabilista de estrelas. 
De repente quisera ser cebola 
para esquecer obrigações 
ou árvore para cumprir todas elas.
Sem embargo mais fácil 
é que confesse a verdade.
Sirvo para ofícios em desuso:
Espírito Santo, dama de companhia, Estátua da Liberdade, Arquipestre de Hita.
Para nada sirvo.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Haikais de Alice Ruiz

Pessoal, estou passando aqui para compartilhar um pouco de alguns haikais da escritora Alice Ruiz. Quando falei dos Rubayat de Omar Khayyam, há algumas postagens atrás, mencionei também breviamente os haikais e o mundo de sentidos condensado nesses pequenos versos. Mas prefiro deixar aqui um trecho da própria Alice Ruiz apresentando sua poesia. Informo que tanto o trecho quanto os haikais apresentados a seguir foram retirados de seu livro "Outro silêncio".



O haikai é uma forma poética que tem repercussão cada vez maior no Brasil, desde que ele chegou, em 1908, no navio Kasato Maru, ao porto de Santos, com a primeira leva de imigrantes vinda do Japão, sua terra de origem.

Muito da cultura japonesa, a começar pela escrita, nasceu na China. O haikai não, ele é fruto autêntico da Terra do Sol Nascente. Os próprios chineses deram o nome de Waka a essa poética. Significa “poesia do país de Wa”, que é como eles chamavam o Japão: Wa (“Japão”) ka (“poesia”).

Quando se aprende outra língua, também se aprende outra forma de pensar e até de sentir. Quando se aprende outra escrita, se aprende outra forma de estar no mundo. Quando se aprende uma forma poética distinta da nossa, se aprende outra forma de ser. E, se isso não vale para todas as formas poéticas, com certeza vale para o haikai. (...) 

(Alice Ruiz)


silêncio na mata
a mariposa pousa na flor
outro silêncio


noite de chuva
horas esperando
que o raio volte


vespa no vidro
sobe, cai, volta a subir
por toda a viagem.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Outras Cozinhas - Eduardo Galeano

Hoje o Outras Cozinhas faz uma visita aos escritos do jornalista e escritor Eduardo Galeano, mais especificamente ao seu belo "O livro dos abraços". Sem tecer muitos comentários sobre o livro, ressalto apenas que é uma daquelas obras de rara sensibilidade e que vale a pena ser lida e relida algumas vezes. Deixo aqui a sugestão!

A função da arte - 1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

- ‘Me ajuda a olhar!’


Celebração da voz humana - 1

Os índios Shuar, chamados de Jíbaros, cortam a cabeça do vencido. Cortam e reduzem, até que caiba, encolhida, na mão do vencedor, para que o vencido não ressuscite. Mas o vencido não está totalmente vencido até que fechem sua boca. Por isso os índios costuram seus lábios com uma fibra que não apodrece jamais.


O crime perfeito

Em Londres, é assim: os aquecedores devolvem calor a troco das moedas que recebem. Em pleno inverno alguns exilados latino-americanos britavam de frio, sem nenhuma moeda para fazer funcionar a calefação de seu quarto.

Estavam com os olhos grudados no aquecedor, sem piscar. Pareciam devotos perante o totem, em atitude de adoração; mas eram uns pobres náufragos meditando sobre a maneira de acabar com o Império Britânico. Se pusessem moedas de lata ou papelão, o aquecedor funcionaria, mas o arrecadador encontraria as provas da infâmia.

O que fazer? Se perguntavam os exilados. O frio os fazia tremer como se estivessem com malária. E nisso, um deles lançou um grito selvagem, que sacudiu os alicerces da civilização ocidental. E assim nasceu a moeda de gelo, inventada por um pobre homem gelado.

Imediatamente, puseram mãos a obra. Fizeram moldes de cera, que reproduziam perfeitamente as moedas britânicas; depois encheram os moldes de água e os meteram no congelador.

As moedas de gelo não deixavam pistas, porque o calor as evaporava.

E assim aquele apartamento de Londres converteu-se numa praia do mar Caribe.