Várias
de minhas leituras, de minhas jornadas literárias, começam ao acaso em algum
sebo. Esta, porém, começou um pouco antes, em uma visita ao blog do poeta e
tradutor Ivo Barroso (gavetadoivo.wordpress.com). Em uma de suas postagens, o
poeta apresenta um pouco da vida e das obras do escritor sueco Stig Dagerman
(1923-1954) e ressalta que, embora famoso em seu país, o autor é praticamente
desconhecido no Brasil. Como aperitivo, Ivo apresenta ainda um conto de
Dagerman (MATAR UMA CRIANÇA - Att Döda ett Barn) traduzido em 2008.
Após
me impressionar com o conto apresentado, não tardei em sair à procura de algum
exemplar da obra de Dagerman. E, embora não estivesse muito confiante que iria
encontrar alguma das raras traduções para o português, em poucos dias localizei
em um sebo próximo a minha casa um exemplar ainda bem conservado do romance
“Vestido vermelho”. Ainda estou bem no
início do livro, mas arrisco-me a dizer que sem dúvida corresponderá às minhas
expectativas em relação à obra. Portanto deixo de sugestão o livro (e a saga em busca do livro). E, como
aperitivo, compartilho aqui o conto servido anteriormente na Gaveta do Ivo:
MATAR UMA CRIANÇA – Stig Dagerman
É um
dia leve e o sol cai a pino sobre a planície. Logo os sinos irão tocar, pois é
domingo. Entre campos de centeio, dois jovens encontram um caminho nunca dantes
percorrido e contemplam no fundo do vale as vidraças brilhantes de três
vilarejos. O homem faz a barba diante do espelho sobre a mesa da cozinha e a
mulher cantarola enquanto corta o pão; sentada no chão, a criança tenta abotoar
o corpete. É a manhã idílica de um dia nefasto, pois neste mesmo dia uma
criança será morta no terceiro vilarejo por um homem feliz. Enquanto isto, a
criança sentada no chão ajusta os botões de seu corpete e o homem que se
barbeia diz que hoje irão sair e farão um passeio de barco e a mulher
cantarolando coloca as frescas fatias de pão num prato azul.
Não há
sombras na cozinha, e enquanto isto homem que irá matar a criança está em
frente a uma bomba de gasolina vermelha em um posto de abastecimento no
primeiro vilarejo. Ainda é um homem feliz que olha o visor da câmera e vê na
lente um carrinho azul e ao lado do carro uma garota que sorri. Enquanto a moça
sorri e o homem faz a foto belíssima, o atendente do posto fecha a tampa do
tanque e lhes deseja bom dia. A garota entra no carro e o homem que irá matar
uma criança retira a carteira do bolso e diz que eles irão até o mar e quando
lá chegarem vão alugar um bote e remarão para bem longe.
Baixando
o vidro da janela do carro, a moça no assento dianteiro escuta o que ele diz,
fecha os olhos e ao fechá-los vê o mar e o homem ao seu lado no bote. Ele não é
um homem mau, está alegre e satisfeito e, antes de entrar no carro, para um
instante diante do radiador cintilante, desfrutando do reflexo, do cheiro de
gasolina e das cerejas. Não há nenhuma sombra sobre o carro e o para-choque não
está amassado nem manchado de sangue.
Mas,
ao mesmo tempo em que o homem naquele primeiro vilarejo, outra vez bate a porta
do carro à sua esquerda e dá partida, a mulher na terceira vila abre a porta do
armário da cozinha e não encontra nenhum açúcar. A criança que acabara de
abotoar seu corpete e sozinha deu laços nos sapatos está de joelhos no sofá e
vê o córrego que serpenteia entre amieiros e um barco velho com os remos
jogados sobre a grama. O homem que irá perder sua criança está barbeado e acaba
de guardar o espelho. Sobre a mesa os copos de café, pão, creme de leite e
algumas moscas. Falta apenas o açúcar e a mãe diz para a criança correr até os
Larssons e pedir alguns cubinhos emprestados. E enquanto a criança abre a
porta o homem grita da cozinha que é para ela se apressar, porque o bote está à
espera na margem e eles irão remar para bem longe como não haviam remado
antes. E enquanto corre atravessando os quintais a criança pensa o tempo
todo no riacho, no bote e nos peixes se batendo e ninguém conta para ela que
tem apenas oito minutos de vida e que o bote continuará lá o dia inteiro e por
muitos outros dias irá continuar.
Não é
tão longe até os Larssons, é só atravessar a rua e enquanto a criança corre
para atravessá-la, um pequeno carro azul percorre o outro vilarejo. É uma
pequena vila com casinhas vermelhas e pessoas que acabaram de acordar diante da
mesa da cozinha segurando copos de café, vendo o carro passar acelerado no
outro lado da cerca levantando, enquanto passa, uma imensa nuvem de poeira. Vai
muito rápido e o homem que dirige vê as macieiras e os postes com seus cabos
telegráficos de relance como se fossem sombras muito escuras. A brisa do verão
entra pela janela, eles saem da vila, e estão seguros no meio da estrada e
estão sozinhos – ainda. É gostoso este viajar solitário por uma estrada tão
ampla e com o campanário ao longe fica ainda mais bonita. O homem é feliz e
forte e com o cotovelo direito sente o corpo de sua namorada. Não é um homem
mau. Tem apenas pressa para chegar ao mar. Não mataria uma mosca, mas ainda
assim irá matar uma criança. Enquanto aceleram de encontro à terceira vila a
garota fecha os olhos e brinca que não irá abri-los enquanto não cheguem ao mar
e imagina no ritmo do balanço oscilante do carro quão tranquilo o mar vai
estar.
E
porque a vida é construída sem nenhuma compaixão um minuto antes de um homem
feliz matar uma criança ele será ainda feliz e antes de a garota gritar
apavorada ela conseguirá fechar os olhos e sonhar com o mar, e o último minuto
na vida de uma criança pode ser aquele em que os seus pais sentados na cozinha
esperam pelo açúcar e conversam sobre os dentinhos brancos de seus filhos e sobre
um passeio de domingo. Esta mesma criança fecha um portão e começa a atravessar
a rua segurando na mão direita alguns cubinhos de açúcar enrolados num papel
branco e este último minuto nada mais é do que um longo e tranquilo riacho com
peixes grandes e um barco com remos silenciosos.
O
depois é sempre tarde demais. O depois é um carro azul derrapando pela estrada
e uma mulher que aos gritos tira a mão da boca e a mão está sangrando.
Depois um homem que abre a porta do carro tentando ficar de pé embora tendo um
abismo de terror dentro de si. O depois são alguns cubinhos de açúcar
esparramados entre o sangue e o cascalho e uma criança deitada imóvel de bruços
com o rosto pressionado contra a estrada. Depois aparecem duas pessoas pálidas,
que ainda não beberam seu café correndo e passando a cerca e vêem naquela
estrada o que nunca irão esquecer. Porque não é verdade que o tempo é o melhor
remédio. O tempo não cura a dor de perder um filho e cicatriza muito mal a
mesma dor de uma mãe que se esqueceu de comprar açúcar e mandou a criança
atravessar a rua para pedir um pouco emprestado. E o tempo também não cura a
angústia do homem feliz que a matou.
Porque
aquele que matou uma criança não vai até o mar. Aquele que matou uma criança
volta em silêncio para casa e ao seu lado uma mulher que não consegue falar e
com as mãos enfaixadas. E por todas as vilas que passam eles não conseguem ver
uma única pessoa feliz. Todas as sombras são ainda mais escuras e enquanto eles
se distanciam o silêncio continua e o homem que matou a criança sabe que este
silêncio é o seu inimigo e que ele irá precisar de todos os anos de sua vida
para vencê-lo gritando que não foi sua culpa. Mas ele sabe que é uma mentira e
que ao invés disso, em cada noite ao se deitar, ele irá desejar apenas um
minuto de sua vida de volta para fazer deste único minuto algo diferente.
Mas a
vida não tem piedade para aqueles que matam uma criança e, por isso, tudo que
vier depois será sempre tarde demais.
Nota retirada também do blog de Ivo Barroso:
A tradução deste conto foi publicada no Brasil inicialmente na revista Dicta & Contradicta, de dezembro de 2008, nr. 02, pgs. 149-51, com autorização da Norsteds Agentur, de Estocolmo.